scripsit in universitate Tübingense Josephus Ratzinger dum erat presbyterus æstate anni 1967 Domini. Legite has paginas (248-253,262) ex secundo capitulo partis tertiæ suarum prælectionum in Symbolum Apostolicum introductorum in Christianismum, vulgo germanico originali "Einführung in das Christentum ― Vorlesungen über das Apostolische Glaubensbekenntnis" et lusitano translato "Introdução ao Cristianismo ― Prelecções sobre o «Símbolo Apostólico»":
A principal questão suscitada pelo último artigo da fé é a questão da Igreja. (...)
«[Creio] na Santa Igreja Católica»
Claro está que não pode ser nossa intenção desenvolver, no presente contexto, uma doutrina completa da Igreja; prescindindo das questões teológico-técnicas isoladas, tentaremos apenas identificar brevemente o verdadeiro motivo da irritação que nos acomete e atrapalha quando pronunciamos a fórmula «Santa Igreja Católica», procurando, então, encontrar uma resposta condizente com a intenção implícita no texto da própria profissão de fé. Nessas reflexões devemos ter sempre presentes os pressupostos destacados anteriormente quando falámos do lugar espiritual e do nexo interno dessas palavras que, por um lado, estão ligadas à profissão de fé na actuação poderosa do Espírito Santo na história e, por outro lado, encontram a sua interpretação nas referências à remissão dos pecados e à comunhão dos santos, em que se ressalta o Baptismo, a Penitência e a Eucaristia como aspectos constitutivos da Igreja, como o seu conteúdo propriamente dito e o seu verdadeiro modo de existir.
Pode ser que muitas das objecções despertadas pela profissão de fé na Igreja já possam ser descartadas pela simples consideração deste duplo nexo. Mesmo assim, convém exteriorizar aqui o que nos aflige nesta passagem. Se formos sinceros, teremos de admitir que gostaríamos de afirmar que a Igreja não é nem santa, nem católica. O próprio Concílio Vaticano II teve a coragem de não falar apenas da Igreja santa, mas também da Igreja pecadora; se há uma crítica a fazer ao concílio, só pode ser a de ter sido até muito tímido na sua afirmação tendo em vista a intensidade da impressão de pecaminosidade da Igreja na consciência de todos nós. Pode ser que essa impressão esteja parcialmente condicionada pela teologia luterana do pecado e, por isso, também por uma pressuposição derivada de posicionamentos dogmáticos antecipados. Mas o que torna essa «dogmática» tão convincente é a sua congruência com a nossa experiência. Os séculos de história da Igreja estão tão cheios de todo o tipo de falhas humanas que até podemos compreender a visão horrenda de Dante, que viu sentada no carro da Igreja a meretriz da Babilónia, ou julgar compreensíveis as terríveis palavras do bispo de Paris, Guilherme de Auvérnia, que no século XIII achava que qualquer um devia ficar horrorizado diante da selvajaria reinante na Igreja: «Já não é uma noiva, mas antes um monstro terrivelmente deformado e feroz [...]».
Para além da santidade da Igreja, parece-nos questionável também a sua catolicidade. A túnica de uma só peça do Senhor foi rasgada em pedaços pelos grupos contraentes e a Igreja una foi dividida em muitas igrejas, cada uma das quais afirma com mais ou menos intensidade ser a única autêntica. Desta maneira, a Igreja tornou-se hoje para muitos o principal obstáculo à fé. Eles só conseguem ver os esforços humanos em demanda do poder e as tácticas mesquinhas daqueles que, afirmando serem os administradores oficiais do cristianismo, mais parecem atrapalhar a manifestação do verdadeiro espírito cristão.
Não há nenhuma teoria que possa refutar definitivamente estes pensamentos de fundo meramente racional; por outro lado, eles também não são de origem puramente racional, misturados que estão com a amargura de um coração eventualmente muito decepcionado com as suas expectativas elevadas e que, no seu amor magoado e ferido, só é capaz de sentir que se desmorona a sua esperança. Como responder, então? Em última análise, só nos resta confessar o motivo que nos leva, apesar de tudo isso, a amar esta Igreja na fé, a ousar reconhecer, mesmo por detrás desse rosto desfigurado, o rosto da santa Igreja. Mas comecemos, mesmo assim, pelos elementos objectivos. Já vimos que a palavra «santa», em todos esses enunciados, não se refere à santidade de pessoas humanas ― trata-se, na verdade, de uma alusão ao dom divino que concede a santidade no meio da imperfeição humana. No «Símbolo», a Igreja não é qualificada de «santa» por se pensar que os seus membros são todos seres humanos santos e sem pecados; esse sonho, que reaparece em todos os séculos, não combina com o contexto lúcido do nosso texto, por mais que corresponda à expressão de um desejo profundo do ser humano, que não o abandonará até que um novo céu e uma nova terra lhe dêem realmente o que este nosso mundo não é capaz de lhe proporcionar. Quanto a este aspecto, já podemos afirmar que os maiores críticos da Igreja do nosso tempo também alimentam, inconscientemente, esse sonho; e, como ficam decepcionados, fecham violentamente a porta de casa e partem para a denúncia do logro. Mas, voltemos ao ponto de partida: a santidade da Igreja consiste naquele poder de santificação que Deus exerce nela apesar da pecaminosidade humana. É esse o verdadeiro sinal da «nova aliança»: em Cristo, o próprio Deus prendeu-Se aos homens, deixou-Se prender por eles. A Nova Aliança já não se baseia no cumprimento mútuo do acordo, porque ela é graça concedida por Deus, a qual não recua diante da infidelidade do ser humano. Ela é a expressão do amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do ser humano; pelo contrário, Deus quer bem ao ser humano apesar de tudo e sem cessar; aceita-o precisamente como ser pecador, dirigindo-Se-Ihe para o santificar e amar.
Como a liberalidade da entrega do Senhor nunca foi revogada, a Igreja continua a ser sempre santificada por Ele e é nela que a santidade do Senhor se torna presente entre os homens. É verdadeiramente a santidade do Senhor que se torna presente e que escolhe como receptáculo da sua presença, num amor paradoxal, também e precisamente as mãos sujas dos homens. Ela é santidade que resplandece como a santidade de Cristo no meio do pecado da Igreja. Assim, a figura paradoxal da Igreja, em que o divino tantas vezes se apresenta em mãos indignas e se faz presente sempre e apenas sob a forma da não-obstância, é para os fiéis um sinal da não-obstância do amor de Deus, que é sempre maior. Esse encadeamento estimulante entre a fidelidade de Deus e a infidelidade do ser humano que marca a estrutura da Igreja é, por assim dizer, a estrutura dramática da graça, pela qual a realidade desta última, como agraciamento dos que são em si mesmos indignos, se torna presença constante e visível na história. Poderíamos até afirmar que a Igreja, precisamente por causa da sua estrutura paradoxal, feita de santidade e imperfeição, é a figura da graça neste mundo.
Demos mais um passo em frente. No sonho humano de um mundo perfeito, a santidade é imaginada como isenção do pecado e do mal, e não como algo que se mistura com eles; ela permanece sempre uma espécie de pensamento a preto e branco que elimina e condena implacavelmente a respectiva forma negativa (que pode ser vista de muitas maneiras). Na actual crítica da sociedade e nas acções em que ela se cristaliza, manifesta-se novamente com toda a nitidez essa tendência implacável própria dos ideais humanos. O que escandalizava os contemporâneos de Jesus em relação à sua santidade era a ausência absoluta de uma atitude julgadora: Ele nem lançava um raio sobre os indignos, nem autorizava os zelosos a arrancarem a erva daninha que viam proliferar. Pelo contrário, a sua santidade manifestava-se precisamente na promiscuidade, com os pecadores que eram atraídos por Jesus; essa mistura indiscriminada chegou ao ponto de Ele mesmo ser transformado «em pecado», tendo de carregar, pela sua execução, a maldição da lei, que o levou a associar inteiramente o seu destino ao dos perdidos (cf. 2Cor 5, 21; Gal 3, 13). Ele atraiu a Si o pecado, fazendo com que este se tornasse parte d'Ele, para assim revelar o que é a verdadeira «santidade»: não discriminação, mas união, não julgamento, mas amor que salva. Não é a Igreja simplesmente a continuação dessa atitude de Deus que se mistura com a miserabilidade humana? Não é ela a continuação da comensalidade de Jesus com os pecadores, mediante a qual Ele se misturou com a aflição do pecado a ponto de parecer sucumbir nele? Não se revela na santidade imperfeita da Igreja diante das expectativas humanas de pureza a verdadeira santidade de Deus, que é amor, um amor que não se mantém na distância aristocrática do puro e intocável, mas se mistura com a sujidade do mundo para a superar? Nesta perspectiva, caberá à santidade da Igreja ser outra coisa que não sustentáculo mútuo, devido ao facto de todos serem, afinal, suportados por Cristo?
Confesso que, para mim, essa santidade imperfeita da Igreja é um consolo infinito. Não deveríamos desesperar diante de uma santidade que fosse imaculada e que só pudesse manifestar-se julgando-nos e queimando-nos? E quem poderá afirmar que não precisa de ser apoiado e sustentado pelos outros? E como poderia alguém que vive da tolerância dos outros recusar o exercício da tolerância da sua parte? Não será ela a única retribuição que ele tem para oferecer? Não será esse o único consolo que lhe resta: apoiar tal como ele próprio é apoiado? A santidade da Igreja começa com o apoio e leva à sustentação; quando já não há apoio, deixa de existir também a sustentação, e uma existência sem sustentáculos só pode cair no vazio. Não me importa a afirmação de que estas palavras são a expressão de uma existência débil e fraca ― é próprio do cristianismo aceitar a impossibilidade da autarquia e a sua própria fraqueza. No fundo, é sempre um orgulho esconso aquele que age na crítica amargurada e biliosa contra a Igreja, uma crítica que já começa a tornar-se moda. Infelizmente, ela faz-se acompanhar, em muitos casos, por um vazio espiritual que nem permite ao seu autor ver a própria essência da Igreja, que é encarada apenas como uma entidade com fins políticos, cuja organização é vista como patética ou brutal, como se a essência da Igreja não estivesse numa realidade que está para além da organização, onde há o consolo pela palavra e pelos sacramentos que ela concede nos bons e nos maus momentos. Os verdadeiros fiéis não dão muita importância à luta em torno da reorganização das formas da Igreja, porque vivem daquilo que ela sempre foi e é. Para saber o que é propriamente a Igreja, é necessário aproximar-se deles. A Igreja não está em primeiro lugar nos órgãos que a organizam, reformam, governam, e sim naqueles que simplesmente crêem e recebem nela o dom da fé que se torna a sua vida. Só quem experimentou, para além das mudanças dos seus servidores e das suas formas, a acção da Igreja nas pessoas, confortando-as, dando-lhes um lar e uma esperança, um lar que é esperança ― caminho para a vida eterna ―, só quem teve essa experiência sabe o que é a Igreja, tanto no passado como no presente.
Não estou a querer afirmar que tudo deve continuar sempre como está e que é necessário aguentar as coisas tal como elas são. A atitude de suportar pode transformar-se num processo muito activo quando acompanhada de uma luta por fazer com que a própria Igreja se realize cada vez mais sustentando e suportando. A Igreja só vive dentro de nós, ela vive da luta da imperfeição que busca a perfeição, e essa luta vive por sua vez do dom de Deus, sem o qual nem sequer existiria. Mas essa luta só poderá ser fecunda e construtiva se for animada pelo espírito da tolerância e do verdadeiro amor. Com isso chegamos ao critério que deve servir sempre de parâmetro na luta crítica pelo aperfeiçoamento da santidade, a qual, não se opondo à tolerância, é até exigida por ela. Esse parâmetro é a construção. Uma amargura que só destrói condena-se a si mesma. Uma porta que se fecha com estrondo pode até transformar-se num sinal para despertar aqueles que se encontram dentro de casa. Mas é uma ilusão imaginar que se pode construir mais no isolamento do que na cooperação, assim como é uma ilusão pensar numa Igreja dos «santos» em vez de numa «Igreja santa», que é santa porque nela o Senhor distribui o dom da santidade imerecida.
Com isto chegamos à outra palavra que o «Credo» usa para qualificar a Igreja: «católica». São muitas as nuances de sentido que acompanham este termo desde a sua origem. Mas existe nele uma ideia principal que pode ser comprovada desde o início: trata-se de uma palavra que remete duplamente para a unidade da Igreja; em primeiro lugar, ela indica a unidade local da Igreja: só a comunidade unida ao bispo é «Igreja Católica»; os grupos que se separaram dessa Igreja local por qualquer razão não são «católicos». Em segundo lugar, o termo refere-se à unidade das muitas igrejas locais entre si; elas não podem fechar-se em si mesmas, pois, para serem Igreja, precisam de estar abertas umas às outras, formando a Igreja una no testemunho comum da palavra e na comunhão da mesa eucarística que recebe a todos em qualquer lugar. Nas explicações antigas do «Credo», a Igreja «católica» é comparada com aquelas «igrejas» que só existem «nas suas respectivas províncias», o que contrasta, portanto, com o verdadeiro ser Igreja.
Estão implícitas, portanto, no atributo «católica» a estrutura episcopal da Igreja e a necessidade da união de todos os bispos entre si; o «Símbolo» não faz nenhuma alusão à cristalização dessa união na sé de Roma. Mas isso não deve levar à conclusão de que esse ponto de orientação da unidade seja apenas fruto de um desenvolvimento secundário. Em Roma, onde o nosso Símbolo tomou forma, essa ideia passou logo a ser parte evidente do seu sentido. É correcto, no entanto, dizer que esse enunciado não faz parte dos elementos primários do conceito de Igreja, e de modo algum pode ser considerado a sua verdadeira base. Os elementos fundamentais da Igreja são o perdão, a conversão, a penitência, a comunhão eucarística e, a partir dela, a pluralidade e a unidade: a pluralidade de igrejas locais que só podem ser consideradas Igreja na medida em que se inserem no organismo da Igreja una. O conteúdo da unidade é formado sobretudo pela palavra e pelo sacramento: a Igreja é una pela palavra una e pelo pão uno. A estrutura episcopal aparece no fundo como meio dessa unidade. Ela não tem a sua razão de ser em si mesma, pois faz parte da ordem dos meios cuja função pode ser descrita pela preposição final «para»: ela está a serviço da unidade das igrejas locais em si e entre si. Um estádio seguinte na ordem dos meios poderia ser descrito, então, pelo serviço do bispo de Roma.
O que fica claro é que a Igreja não deve ser pensada em termos de organização; a organização é que deve ser entendida em função da Igreja. Mas, ao mesmo tempo, percebe-se que, para a Igreja visível, a unidade visível é mais do que «organização». A unidade concreta da fé comum a ser testemunhada na palavra e na mesa comum de Jesus Cristo é parte essencial do sinal que a Igreja deve erguer no mundo. Ela só corresponde à exigência da profissão de fé na medida em que é «católica», isto é, visivelmente una na pluralidade. Num mundo dividido, cabe-lhe ser o sinal e o meio da unidade, superando e unindo nações, raças e classes sociais. Sabemos que ela fracassa constantemente também nessa tarefa; já na Antiguidade teve muita dificuldade em ser a Igreja simultaneamente dos bárbaros e dos Romanos; nos tempos modernos, não conseguiu evitar a luta entre as próprias nações cristãs, e ainda hoje não consegue unir ricos e pobres de tal maneira que a abundância duns se transforme em meio de saciar a fome dos outros, pelo que o sinal da comensalidade continua por realizar. Mesmo assim, não devemos esquecer os inúmeros imperativos que o parâmetro da catolicidade acabou por produzir. E sobretudo, em vez de acertar contas com o passado, atender ao chamamento do presente, não só professando a catolicidade no «Credo», mas também tentando realizá-la na vida do nosso mundo despedaçado.
(...) A meta do cristão não é uma determinada bem-aventurança, mas sim o todo. Ele crê em Cristo e por isso crê no futuro do mundo, e não apenas no seu próprio futuro. Ele sabe que esse futuro é mais do que ele próprio poderia criar. E que existe uma razão de ser que ele não seria capaz sequer de destruir. Poderá então ficar descansado, à espera dos acontecimentos? Pelo contrário: como sabe que existe uma razão de ser, pode e deve empenhar-se com alegria e sem temor na realização da obra da história, mesmo que o seu pequeno campo de visão lhe dê a impressão de que tudo não passa de um trabalho de Sísifo em que a pedra do destino humano é empurrada monte acima por cada nova geração, para no fim despencar de novo, frustrando todos os esforços anteriores. Quem crê sabe que existe um «adiante», que não andamos em círculo. Quem crê sabe que a história não se assemelha ao tapete de Penélope, que é sempre urdido para, depois, ser novamente desfeito. Pode ser que os cristãos também sejam atacados pelos pesadelos do temor e da inutilidade que levaram o mundo pré-cristão a criar imagens tão comoventes da frustração diante da vanidade do esforço humano. Mas nesse pesadelo ressoa a voz salvadora e transformadora da realidade: «Tende confiança, eu venci o mundo!» (Jo 16, 33). O novo mundo, que é representado pela imagem da Jerusalém definitiva com que termina a Bíblia, não é uma utopia ― é a certeza ao encontro da qual caminhamos na fé. Há uma salvação do mundo ― é essa a confiança que sustenta o cristão, e que faz com que também valha a pena ser cristão nos dias de hoje.
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